quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Vírgula

(latim virgula-ae)
substantivo feminino
1. [Gramática Sinal ortográfico de pontuação (,) que serve para separar ou isolar membros de uma frase e que pode corresponder na leitura oral a uma pausa de curta duração.
2. [Matemática Sinal gráfico (,) que serve separar os números inteiros das fracções decimais.
3. [Brasil]  Madeixa encaracolada de cabelo junto à testa ou junto às orelhas.
4. [Brasil]  Borboleta diurna.
interjeição
5. Expressão usada para contrariar ou para condicionar algo anteriormente referido (ex.: deixo-o irvírguladeixo se ele prometer ser responsável). = PONTO E VÍRGULA



Tendo construído uma longa e bem sucedida carreira no negócio funerário, Virgulino Comma conhecia a importância das vírgulas. Sabia, como ninguém, que cadenciar, perante as famílias enlutadas, o discurso com aquelas curtas pausas era uma arma eficaz na arte de comercializar a última viagem.

As breves interrupções na descrição das infinitas opções fúnebres eram a maneira de espelhar o luto dos que procuravam os seus serviços. Sentia que a exposição assim pontuada era bem recebida pelos clientes e que isso os convencia, sem que o esforço de venda se notasse, a alargar um pouco mais os cordões à bolsa.

Em bom rigor, Virgulino já não se esforçava para ser assim. Os anos de hábito fizeram dele um monge virgulativo. A sua rotina era, automaticamente, pautada por uma cadência lenta, em que cada gesto era separado do próximo por uma pequena pausa.

Era como se Virgulino formulasse vírgulas mentais para intercalar todas as suas acções por mais simples que fossem. Para beber café, Virgulino abria o pacote de açúcar (vírgula) despejava-o na chávena (vírgula) pousava o pacote (vírgula) pegava na colher (vírgula) mergulhava-a no café (vírgula) mexia o açúcar (vírgula) pousava a colher (vírgula) segurava na chávena (vírgula) levava-a à boca (vírgula) bebia o café, sempre em pequenos e brevemente espaçados tragos.

De manhã à noite, Virgulino virgulava.

E virgulou até ao dia em que o negócio fúnebre foi invadido por multinacionais. Estas empresas faziam das exéquias uma bem oleada cadeia de montagem que não se compadecia com o ritmo com que Virgulino conduzia o negócio. E os clientes pareciam apreciar a rapidez e o menor custo com que o assunto era tratado. Virgulino, antes tão eficaz, era agora um anacronismo.

Reagiu. Começou a emprestar à sua rotina um dinamismo incessante. A sua vida passou a ser um corrupio desenfreado sem pausas ou momentos mortos.

Mas uma prática de anos tornou-o incapaz de viver neste ritmo frenético. A sua existência passou a ser uma miserável espiral de pequenos incidentes: bebia o café amargo por se esquecer de o mexer, atabalhoava o discurso perante os clientes ou entalava-se na porta do carro por não parar para tirar a mão antes de a fechar.

Esta azáfama durou-lhe o resto da vida, encurtada por um comboio numa passagem de nível sem guarda. Aparentemente Virgulino não parou, escutou ou olhou, como recomendava a sinalética. O bonito enterro foi confiado a uma funerária multinacional.

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