sexta-feira, 25 de abril de 2014

Sonhar

verbo intransitivo
1. Ter um sonho ou sonhos.
2. Fantasiardevanear.
3. Ter ideia fixa.
4. Cuidar em.
5. Pensar com insistência em.
verbo transitivo
6. Ver em sonhos.



O homem que não conseguia sonhar estava sentado à beira do Tejo.

Se conseguisse sonhar tinha percebido o que a gaivota suspensa sobre o rio lhe tentava dizer. Que o desafiava a voar com ela em direcção ao sol que se punha, atrás do barco que partia.

Ouvi-la-ia contar-lhe as aventuras que se escondem para lá do horizonte. Histórias de flibusteiros e canhões, tesouros e sangue. Histórias de paixões quentes como o equador e amores eternos como os gelos polares.

Soubesse o homem sonhar, perceberia que a prata na superfície da água é a prata verdadeira. Sonharia pegar em toda aquela prata e comprar tudo o que não se compra: o ocaso de Junho sobre a barra de Lisboa ou um banco no Jardim da Estrela para se sentar naquelas tardes de Janeiro em que o Sol não disfarça o frio mas a companhia nos mantém quentes. Coisas assim.

Saberia, como só quem sonha sabe, que se pode adivinhar um futuro improvável. Saberia ainda que quando, inevitavelmente, esse futuro não chegasse, isso não seria doloroso, não seria uma desilusão. Saberia que sonhar é como saber que se pode voar como a gaivota e ao mesmo tempo saber que é impossível voar quando não se é uma gaivota.

Perceberia, enfim, que o sonho afinal não comanda a vida. Porque o sonho é a vida. É a parte da vida que nos mantém conscientes da vida real, aquela que não é sonho. Que nos dá a distância para perceber que a realidade por vezes supera o absurdo e, exactamente por isso, nos deixa a doce dúvida sobre a possibilidade de concretizar o que sonhamos. O que às vezes acontece.

Se o homem soubesse sonhar, tinha ali ficado a perder-se em sonhos de prata, de ouro e de aventuras, embalados pelas ondas do rio e pela sedução laranja que o horizonte de Lisboa às vezes forma a poente.

Mas não sabia sonhar.

Levantou-se, virou as costas as costas ao rio e voltou para casa.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Perdão

(origem controversa)
substantivo masculino
1. Remissão de culpadívida ou pena. = DESCULPA
2. Absolviçãoindulto.
3. Benevolênciaindulgência.
interjeição
4. Fórmula que exprime um pedido de desculpas.


Minha Querida,

Tive de partir.

Não consigo viver assim. A amar-te acima do que posso. A amar-te mais do que a vida, mais do que sei.

Sinto-me um funâmbulo desastrado sob o abismo que não consegue escolher o  ponto firme para onde caminhar. Incapaz de chegar a uma margem segura. O abismo és tu. Um abismo que me atrai exacerbadamente, com uma força irresistível.

Lembras-te de me explicares que a gravidade diminui com a distância entre os corpos? É isso. Tenho de me distanciar para fugir de me afundar em ti. De me perder - de deixar de ser - por ser teu.

Não tenho um segundo de paz comigo próprio. Falta-me a paz, falta-me o apetite e falta-me o ar. Não os quero porque só te quero a ti. Sempre. Não sabes o que é levantar-me de manhã e ter um só pensamento. Passar o dia com esse mesmo pensamento, o mesmo com que me deito. E mais nada. Mais nada. Nada.

Sofro, como vs.﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽o vo meu indiferente ick?  a voliçrque nimo medo. Medo de um amor que me mata vivo, que me tira de mim e deixa um restês.

Parto, ou fujo como sei que vais pensar, porque tenho medo. Medo de um amor que me mata vivo, que me tira de mim e deixa apenas um resto mecânico. Uma sobra orgânica sem vontade própria a funcionar em função de ti. Não porque o imponhas ou sequer desejes mas porque perto de ti sou essa carcaça que perdeu a vontade própria.

Deixo-te porque é isso ou o fim. Tenho de tentar vencer esta avalanche em que se transformou o amor que te tenho. Forço-me a fugir deste vale que ameaça tornar-se o do meu fim, soterrado por um amor asfixiante.

É imperdoável o que te faço fugindo mas se não o faço deixo de existir. E se deixo de existir deixo de te amar, o que não posso. Meu amor, não te deixo por ter medo de morrer. Deixo-te porque é a única maneira de conseguir amar-te. O único amor que alguma vez terei, agora e para sempre. Um amor que só pode sobreviver a uma distância segura.

É por isso que fujo.

Perdoa-me.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Ácido

(latim acidus-a-umazedoácidodesagradável)
substantivo masculino
1. [Química Composto hidrogenado susceptível de se combinar com metais ou com bases para dar sais.
2. Substância azeda.
adjectivo
3. [Química Que tem o valor de pH inferior a 7, a uma temperatura de cerca de 25º C. ≠ BÁSICO
4. [Química Que tem as características de um ácido.
5. Cujo sabor é azedo ou acre.
6. Que é muito irónico ou cruel (ex.: comentários ácidos). = AZEDO


Era agora Martim Moniz na madrugada da véspera do assalto a Lisboa.

Em sonhos, o anjo Gabriel trazia-lhe o futuro. Em pesadelos sucessivos – má trip,  meu pensou, com a nesga de consciência que lhe restava – deu-lhe a ver os horrores por trás da porta que lhe destinaram abrir: o sangue de Inês esventrada a encarnar o Mondego e os verdugos do Santo Ofício a arrancarem confissões a cristãos-novos, a cristãos-velhos e a quem quer que lhes apetecesse. Gabriel mostrou-lhe depois o fedor a morte das naus carregadas de negros e mostrou-lhe ainda como eles caíam sob o estalo do chicote nas plantações de açúcar e café e mais o quê que apetecesse ter em Lisboa.

Foda-se mais isto, disse-se num curto segundo em que conseguiu sair da cabeça de Martim.

Mas logo voltou. Gabriel desfilou-lhe os horrores das invasões francesas, dos tocos decepados pelos canhões fratricidas, mostrou-lhe a vergonha imposta pelo mapa cor-de-rosa e as décadas sombrias sob a botas do ditador e mais mortos e estropiados na defesa de um império caduco e reumático. E depois fê-lo amargar sonhos de doutores de pacotilha, submarinos e alcatrão. Muito alcatrão, cilindrado com corrupção.

Em agonia por não ver fim ao pesadelo, Gabriel mostrar-lhe duas últimas imagens: uma em que anunciava a vinda do Messias e outra a entregar o Corão ao Profeta. E, pela primeira vez, falou-lhe:

- Martim, as mortes, torturas e abominações que te mostrei ainda estão encerradas pela porta que planeias franquear amanhã.

Na manhã seguinte, Martim já sabia que ia faltar à palavra ao rei que até ali seguira cegamente. Ia abrir a porta do castelo mas não para o invadir. Ia – e foi – oferecer a sua ajuda aos sitiados, impedir que as profecias de Gabriel se cumprissem. Manter atrás da porta o desfile de aberrações que sonhara na véspera.

Martim já não era Martim. Passou a chamar-se Hashim, como o avô do Profeta, literalmente, o destruidor do mal. Tal como ajudara o rei Afonso a chegar a Lisboa, fazia agora o caminho inverso, desbaratando os sitiantes até ao extremo norte da Península, reconquistando as terras para o povo que agora chamava seu.

Já não era Martim nem Hashim. Voltara a ser ele próprio. Lutava para se levantar e abrir os olhos, tentando acordar sob o sol alto que queimava o chão do que lhe pareceu ser o Largo do Camões.

Tenho de largar os ácidos

sábado, 5 de abril de 2014

Mentira

(origem controversa)
substantivo feminino
1. Acto de mentir.
2. Engano propositado. = FALSIDADE
3. História falsa. = PATRANHAPETATANGA
4. Aquilo que engana ou ilude. = FANTASIAILUSÃO


- E se ninguém conseguisse mentir? – disse Marta, ainda ligeiramente ofegante, com o olhar fixo no tecto.

Ele franziu a testa. Abominava os seus devaneios utópicos sobre como o mundo devia ser para ser melhor. Virou-se para a admoestar e evitar uma conversa que não lhe apetecia ter mas a sua vontade foi vencida pelos olhos de avelã e pelas sardas que pelo estio lhe salpicavam o veludo da pele branca, enchendo-lhe as medidas e vazando-lhe a resistência.

Percebendo que o tinha onde queria, ela fez um esgar imperceptível e virou-se à espera da reacção.

- Bom, não tenho a certeza de termos um mundo melhor. Para começar, a economia ia-se ressentir. Já pensaste no desastre que seria termos vendedores completamente honestos ou empresários a revelarem as suas dúvidas sobre os efeitos dos seus produtos para a saúde ou o ambiente?

- Sim –Marta já antecipava este cepticismo– mas isso seria um choque inicial. Levaria à ruína dos desonestos, à conversão dos que ainda não perderam a noção da verdade e à prosperidade dos que nunca tentam enganar os outros. Porque os há, ou não acreditas?

Ele fugiu à pergunta com novas objecções:

- E na política? Veríamos candidatos revelarem os interesses que servem ou os apoios de que se envergonham. A democracia deixaria de funcionar. Daria lugar à anarquia ou à tirania. Era o fim da pouca paz que ainda existe.

- Mas de que serve uma paz desonesta? – disse ela soerguendo-se apoiada no antebraço esquerdo, voltada para ele. Este movimento desnudou-lhe os seios, visão que, invariavelmente, o deixava num silêncio contemplativo e apatetado. Ela aproveitou para continuar:

- Não precisava de ser uma coisa imediata. A humanidade podia começar lentamente a criar este hábito de ser verdadeiro, transmiti-lo de pais para filhos, multiplicando-o pelas gerações até chegar a esse estado de honestidade universal que ninguém estranharia. Um último passo da evolução, se quiseres. E podia começar por nós. Faríamos da verdade o maior ensinamento aos nossos filhos. Seriam eles os peregrinos de um mundo incapaz de mentir e...  

- Já percebi! – interrompeu, arrancado do estupor pela tempestade de ideias incómodas que Marta atirava – E podemos começar já.

Acendeu um cigarro, lançou o fumo e a pergunta:

- É agora que me dizes o que foste fazer a casa do Jaime na semana passada?

Marta voltou a deitar-se, fixou os olhos novamente no tecto e calou-se.