quinta-feira, 27 de março de 2014

Companhia

(companha + -ia)
substantivo feminino
1. Acto de acompanhar. = ACOMPANHAMENTO
2. O que acompanha alguém (ex.: o livro foi a sua companhia durante a viagem).
3. Reunião de pessoas.
4. Grupo de indivíduos que convivem.
5. Sociedade (mercantilindustrialetc.).
6. Associação de pessoas ou grupo organizado com um objectivo específico (ex.: companhia de teatro).
7. Subdivisão de batalhão comandada por capitão.



Assinou o contrato à pressa. Queria reduzir ao mínimo possível o contacto com aquele individuo e sair rapidamente daquele antro escuro e cheio de delinquentes, na pior zona da cidade.

Claro que temia ser apanhado - era demasiado arriscado reduzir a escrito um serviço como o que estava a contratar mas essa não era a sua principal aflição. O que abominava sobremaneira era recorrer a outra pessoa para o que quer que fosse. Era-lhe difícil reconhecer a impossibilidade de resolver sozinho um problema.

Era um misantropo. Desde cedo se habituara a viver sem dependências, sem os dramas, os aborrecimentos e as inquietações que só uma vida em comunhão podem trazer. Era feliz na sua vida de eremita. Vivia numa felicidade monástica, num sossego que lhe preenchia uma existência que só ambicionava o distanciamento.

Esse contentamento foi interrompido pelo jovem casal que arrendara a casa colada à sua. Sem êxito, tentou todo o tipo de estratégias que no passado lhe tinham servido sem falhas o desígnio de viver sem companhia: Encheu-lhes a casa de baratas, vandalizou-lhes o carro, estragou-lhes o sono com marteladas a meio da noite e plantou-lhes armadilhas no quintal.

Percebeu que por falta de alternativas ou por uma incompreensível e incomensurável dose de estupidez, os jovens persistiam. Pior que isso, os incidentes levavam-nos a procurá-lo numa tentativa de estabelecer boas relações de vizinhança. Massacravam-no com uma urbanidade amistosa que lhe dava um asco que começava a afectá-lo fisicamente.

A irritação de pele que atribuía à náusea que o contacto humano lhe provocava foi a gota de água que o levou a contactar o assassino a soldo. Estranhou que o individuo quisesse um contrato assinado para formalizar o lúgubre serviço mas era a primeira vez que o fazia e não estava em posição de discutir estes detalhes quando a sua saúde pedia uma resolução drástica e imediata.

O contrato estava assinado. Em breve teria a sua felicidade de volta, o seu sossego.

Animado por este pensamento abandonou rapidamente aquele bar de marginais e atravessou a rua, com os olhos enfiados no chão como gostava. Tão alheado que nem reparou na carrinha da Perfumes & Companhia que vinha a demasiada velocidade para evitar o embate fatal. Um embate tão violento que o deixou impresso no capô, cobrindo metade do nome da conhecida loja. A metade que dizia Perfumes. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

Atrasar

(atrás + -ar)
verbo transitivo
1. Não dar expediente tão rápido como é devido. = DEMORAR ≠ ADIANTAR
2. Fazer retrogradar.
3. Alterar a hora de um relógio para antes do tempo que ele está a marcar. = RETARDAR ≠ ADIANTAR
verbo intransitivo
4. Ter (o relógiomovimento mais lento que o devido. ≠ ADIANTAR
verbo pronominal
5. Ficar para trás.
6. Chegar tarde.
7. Ter pagamentos em dívida.

Mas porque raio tinha aceite fazer aquela reunião no dia do regresso? Conhecia o trânsito de Kinshasa e sabia que a escassa distância até ao aeroporto de N’Djili podia levar horas a percorrer.

Tinha aceite porque era incapaz de deixar sem resposta as solicitações do seu exigente trabalho. Vivia apenas para cumprir prazos, fazer contactos, entregar projectos. Vivia apenas para o seu trabalho.

Entregava-se a este pensamento, para si atipicamente ocioso, no táxi enterrado no mais caótico trânsito que África consegue produzir, rodeado por todos os lados de carros e pessoas e animais a puxar carroças.

Tentou focar-se. Gostava de focar-se. Pegou no telefone para tentar responder a emails mas depressa se voltou a dispersar nos pensamentos que desejava afastar. Lembrou-se da conversa da véspera com Moudjibou, o encarregado da obra em Mangai, nas margens do rio Kasai. Exasperado com o desdém da equipa local pelo cumprimento de prazos, quis explicar a Moudjibou  a importância de fazer as coisas atempadamente:

- Vês aquela água que está agora a passar por debaixo da ponte? Nunca mais voltará a passar por ali. É por isso que é vital aproveitar as oportunidades, não deixar para amanhã o que hoje deve ser feito.

Moudjibou fez um gesto aquiescente. Tomou o seu tempo e retorquiu:

- É certo que aquela água não voltará. Mas já viste a enorme quantidade de água que continua a fazer o seu caminho? O caminho que faz há tantas gerações? Porque razão precisamos exactamente daquela?

Rendeu-se. Não tinha resposta para Moudjibou. Continuava a tentar encontrá-la até ser interrompido pelo taxista que anunciava terem chegado ao aeroporto.

Pagou rapidamente e correu como um louco à procura da porta de embarque. Corria mas não parava de pensar no disparate que era correr. No tempo que tinha perdido a correr atrás de aviões, de clientes e de contratos até ser barrado pela funcionária que o informou que o avião para Lisboa acabara de partir. Désolée, disse ela.

Mas ele não estava desolado. Começava a perceber que o seu destino não era Lisboa. Começava a aprender a lição de Moudjibou e deu por si a olhar para o placar das partidas, à procura de um destino onde não tivesse de correr.

Algumas horas mais tarde foram entregues nos perdidos e achados do aeroporto uma pasta e um telefone. Neste, um último email:

Para: Sede
Assunto: Despeço-me


Não consigo correr mais.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Fugir

(latim fugio-ire)
verbo intransitivo
1. Deixar um lugar depressa ou ocultamente.
2. Retirar em debandada.
3. Esconder-se.
4. Desaparecer.
5. Escapar.
6. Evitarlivrar-se.
7. Correr rapidamente.
verbo transitivo
8. Evitar.
9. Esquivar-se a.


Estou farto desta terra. Uma terra em que todos os dias são cinzentos. Em que as pessoas são pálidas como as casas e frias como as ruas. E do frio. Já não posso com este frio, com esta frieza. Tenho saudades de me ofuscar com o sol, de fechar os olhos ao sol e continuar a vê-lo, queimado nas pálpebras fechadas. Não consigo fazer isso aqui.

E estou farto de ouvir uma língua que não sabe dizer saudade.

Tenho saudades. Saudades de andar nas ruas do meu país. Tenho saudades de não ter medo de andar na rua. De não ser estrangeiro. De não terem medo de mim.

Tenho saudades da minha casa. Falta-me a minha casa e o abraço do meu pai e o carinho da minha mãe. Dói-me de saudades. Foi preciso sair do meu país para saber o que é uma dor assim. Uma dor que não percebo se começa por dentro e se espalha pelo corpo ou, ao contrário, começa por fora, na pele – nesta terra ninguém se toca - e depois mói e angustia por dentro.

Mas fugi do meu país, porque nele não podia viver. Sobrevivia, remediava-me, mas não vivia. Fugi do país onde o céu e o mar são azuis mas os recibos são verdes. Onde o trabalho honesto é cada vez mais raro e mal pago. Onde se desconta sobre os descontos, se corta sobre os cortes, se taxa sobre os impostos. Onde se corta o direito à vida digna.

E as pessoas deixam que lho façam. É um país desgovernado porque as pessoas não sabem – ou não querem saber, ainda não percebi – que podem escolher quem os governe em vez de quem se governe. Amofinam-se mas não se amotinam. Nem quando lhes infligem o mais duro golpe, o de verem fugir os filhos a quem quiseram dar a vida que não puderam ter. Mas a quem não conseguiram dar mais do que um bilhete de ida.

O meu país tem sol mas está cada vez mais escuro, mais morto.  Extingue-se a cada dia que passa sem perceber como estancar a sangria que o mata, que faz sofrer os que ficam e os que fogem. Sem perceber que o remédio que lhe vendem como cura é, afinal,  a doença que o aflige.


quarta-feira, 5 de março de 2014

Regressar

verbo intransitivo
1. Voltartornar ao ponto de partida.
verbo transitivo
2. Fazer voltar.


O táxi partiu e deixou um homem, estacado, a olhar para a casa. A única a que alguma vez chamou sua, a casa onde nasceu. Uma casa velha mas de uma nobreza sóbria que os anos não conseguiram vergar.

Uma casa na Rua das Flores de onde se espreitava uma nesga do Tejo que inspirava as brincadeiras da rua: era bucaneiro e explorador, navegante e comandante de uma tripulação de putos, um herói de espadas de pau a ensaiar a vida que haveria de levar.

O mesmo Tejo que reflectia a lua como os olhos da doce Ângela, marejados na noite em que, achando-se senhor do seu destino decidiu descer a rua em direcção ao Tejo, aos mares a que não resistia. Prometeu voltar em breve, cobri-la dos tesouros e aromas e tecidos que estavam para lá do horizonte. Prometeu escrever-lhe de cada porto onde acostasse.

Prometeu e não cumpriu. A única promessa a que se sentia obrigado era aquela voz interior que o desafiava – sempre o desafiara -  a ir mais além. A percorrer os mares distantes e a descobrir os cantos que o mundo esconde, vencendo distâncias, intempéries, fomes e canículas. Em busca das riquezas que nunca encontraria.

Um homem não chora. Não chorou quando o telegrama a avisar da morte de Ângela lhe chegou. Sabia que tinha morrido aos poucos: as cartas que lhe mandara – ela cumprira a promessa -  mostravam que ela definhava, ano após ano, pela sua ausência, pelo seu silêncio. Pelo seu amor.

A memória de Ângela não desapareceu. Com a mesma raiva com que combatia os elementos e o destino que o afastava da fortuna, lutava contra essa lembrança – essa culpa - com a ajuda do álcool e das mulheres que encontrava nos prostíbulos dos portos onde desembarcava, em Argel, Buenos Aires e tantos outros entretanto esquecidos.

Outros telegramas, anúncios de outras mortes, chegaram ao longo dos anos. Nenhum deles o fez chorar e nenhum deles o fez regressar. Fez-se velho, com a pele curtida pelo sal do mar que se lhe entranhara nas rugas e lhe entesara o cabelo. Demasiado velho para o engajarem. Foi assim, velho e derrotado, que o táxi o trouxe à Rua das Flores.

Um homem chega a casa e, encontrando-a vazia como o saco de lona que trazia às costas, deixou-se cair no chão a chorar.