sábado, 5 de abril de 2014

Mentira

(origem controversa)
substantivo feminino
1. Acto de mentir.
2. Engano propositado. = FALSIDADE
3. História falsa. = PATRANHAPETATANGA
4. Aquilo que engana ou ilude. = FANTASIAILUSÃO


- E se ninguém conseguisse mentir? – disse Marta, ainda ligeiramente ofegante, com o olhar fixo no tecto.

Ele franziu a testa. Abominava os seus devaneios utópicos sobre como o mundo devia ser para ser melhor. Virou-se para a admoestar e evitar uma conversa que não lhe apetecia ter mas a sua vontade foi vencida pelos olhos de avelã e pelas sardas que pelo estio lhe salpicavam o veludo da pele branca, enchendo-lhe as medidas e vazando-lhe a resistência.

Percebendo que o tinha onde queria, ela fez um esgar imperceptível e virou-se à espera da reacção.

- Bom, não tenho a certeza de termos um mundo melhor. Para começar, a economia ia-se ressentir. Já pensaste no desastre que seria termos vendedores completamente honestos ou empresários a revelarem as suas dúvidas sobre os efeitos dos seus produtos para a saúde ou o ambiente?

- Sim –Marta já antecipava este cepticismo– mas isso seria um choque inicial. Levaria à ruína dos desonestos, à conversão dos que ainda não perderam a noção da verdade e à prosperidade dos que nunca tentam enganar os outros. Porque os há, ou não acreditas?

Ele fugiu à pergunta com novas objecções:

- E na política? Veríamos candidatos revelarem os interesses que servem ou os apoios de que se envergonham. A democracia deixaria de funcionar. Daria lugar à anarquia ou à tirania. Era o fim da pouca paz que ainda existe.

- Mas de que serve uma paz desonesta? – disse ela soerguendo-se apoiada no antebraço esquerdo, voltada para ele. Este movimento desnudou-lhe os seios, visão que, invariavelmente, o deixava num silêncio contemplativo e apatetado. Ela aproveitou para continuar:

- Não precisava de ser uma coisa imediata. A humanidade podia começar lentamente a criar este hábito de ser verdadeiro, transmiti-lo de pais para filhos, multiplicando-o pelas gerações até chegar a esse estado de honestidade universal que ninguém estranharia. Um último passo da evolução, se quiseres. E podia começar por nós. Faríamos da verdade o maior ensinamento aos nossos filhos. Seriam eles os peregrinos de um mundo incapaz de mentir e...  

- Já percebi! – interrompeu, arrancado do estupor pela tempestade de ideias incómodas que Marta atirava – E podemos começar já.

Acendeu um cigarro, lançou o fumo e a pergunta:

- É agora que me dizes o que foste fazer a casa do Jaime na semana passada?

Marta voltou a deitar-se, fixou os olhos novamente no tecto e calou-se.

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