quarta-feira, 9 de abril de 2014

Ácido

(latim acidus-a-umazedoácidodesagradável)
substantivo masculino
1. [Química Composto hidrogenado susceptível de se combinar com metais ou com bases para dar sais.
2. Substância azeda.
adjectivo
3. [Química Que tem o valor de pH inferior a 7, a uma temperatura de cerca de 25º C. ≠ BÁSICO
4. [Química Que tem as características de um ácido.
5. Cujo sabor é azedo ou acre.
6. Que é muito irónico ou cruel (ex.: comentários ácidos). = AZEDO


Era agora Martim Moniz na madrugada da véspera do assalto a Lisboa.

Em sonhos, o anjo Gabriel trazia-lhe o futuro. Em pesadelos sucessivos – má trip,  meu pensou, com a nesga de consciência que lhe restava – deu-lhe a ver os horrores por trás da porta que lhe destinaram abrir: o sangue de Inês esventrada a encarnar o Mondego e os verdugos do Santo Ofício a arrancarem confissões a cristãos-novos, a cristãos-velhos e a quem quer que lhes apetecesse. Gabriel mostrou-lhe depois o fedor a morte das naus carregadas de negros e mostrou-lhe ainda como eles caíam sob o estalo do chicote nas plantações de açúcar e café e mais o quê que apetecesse ter em Lisboa.

Foda-se mais isto, disse-se num curto segundo em que conseguiu sair da cabeça de Martim.

Mas logo voltou. Gabriel desfilou-lhe os horrores das invasões francesas, dos tocos decepados pelos canhões fratricidas, mostrou-lhe a vergonha imposta pelo mapa cor-de-rosa e as décadas sombrias sob a botas do ditador e mais mortos e estropiados na defesa de um império caduco e reumático. E depois fê-lo amargar sonhos de doutores de pacotilha, submarinos e alcatrão. Muito alcatrão, cilindrado com corrupção.

Em agonia por não ver fim ao pesadelo, Gabriel mostrar-lhe duas últimas imagens: uma em que anunciava a vinda do Messias e outra a entregar o Corão ao Profeta. E, pela primeira vez, falou-lhe:

- Martim, as mortes, torturas e abominações que te mostrei ainda estão encerradas pela porta que planeias franquear amanhã.

Na manhã seguinte, Martim já sabia que ia faltar à palavra ao rei que até ali seguira cegamente. Ia abrir a porta do castelo mas não para o invadir. Ia – e foi – oferecer a sua ajuda aos sitiados, impedir que as profecias de Gabriel se cumprissem. Manter atrás da porta o desfile de aberrações que sonhara na véspera.

Martim já não era Martim. Passou a chamar-se Hashim, como o avô do Profeta, literalmente, o destruidor do mal. Tal como ajudara o rei Afonso a chegar a Lisboa, fazia agora o caminho inverso, desbaratando os sitiantes até ao extremo norte da Península, reconquistando as terras para o povo que agora chamava seu.

Já não era Martim nem Hashim. Voltara a ser ele próprio. Lutava para se levantar e abrir os olhos, tentando acordar sob o sol alto que queimava o chão do que lhe pareceu ser o Largo do Camões.

Tenho de largar os ácidos

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