sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Esquizofrenia

(esquizo- + grego frên, -enós, diafragma, coração + -ia)
substantivo feminino
[Psiquiatria]  Doença mental complexa, caracterizada, por exemplo, pela incoerência mental, personalidade dissociada e ruptura de contacto com o mundo exterior


O primeiro-ministro diz que não se gasta um cêntimo de dinheiro público a resolver falências de privados.

A ministra das finanças diz que a pipa-de-massa (para usar o termo técnico apropriado) gasta no resgate do BES tem, afinal, impacto no orçamento (sim, as continhas do dinheiro público que se gasta) mas “não conta” e é meramente “um impacto estatístico”.

O jornalista que entrevista a ministra não explora esta nova concepção orçamental que trata de um modo um resgate bancário – despesa boa, que não afecta verdadeiramente o orçamento – e de outro modo coisas nocivas como as reformas, os salários ou os gastos na educação, para citar alguns exemplos.

Diz o dicionário que a esquizofrenia se caracteriza por manifestações de incoerência mental e por uma quebra de contacto com o mundo exterior.  

Sendo uma doença mental complexa, presumo que as suas vítimas não consigam funcionar em sociedade sem, pelo menos, algum tipo de tratamento que mitigue os seus efeitos. E que esse tratamento exija algum tempo de afastamento até que o doente recupere alguma da capacidade que a doença lhe rouba.

O dicionário não diz mas é rara a ocasião em que o doente consegue identificar em si próprio os sintomas da doença. É por isso nosso dever, quase caritativo, reportar os casos às autoridades que se possam encarregar de os levar para o justo tratamento.

Estão aí três.



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Epitáfio

(latim epitaphius-ii)
substantivo masculino
1. Inscrição sepulcral.
2. Breve elogio fúnebre.


“Nota de agradecimento - O Conselho de Administração do Banco Espírito Santo manifesta o seu agradecimento pela confiança dos seus Clientes e Acionistas, pela lealdade e dedicação dos seus Colaboradores e pela cooperação das Autoridades Governamentais e de Supervisão.
Lisboa, 17 de março de 2014

Grupo Banco Espírito Santo, Relatório e Contas 2013, pág. 89

Quando acontece uma falência bancária surgem de imediato centenas de opiniões sobre a forma como (não) se preveniu, geriu e resolveu a questão. Debate-se a regulação e a qualidade da supervisão, debate-se a escolha entre um resgate com dinheiros públicos ou privados e debate-se quem deve pagar pelo falhanço (accionistas, credores ou depositantes). Só num ponto ninguém toca: não devia alguém ganhar com a falência de um banco?

Porque se há depositantes que merecem ser salvos, para que haja confiança no sistema bancário, também os devedores merecem ser recompensados. Afinal, venceram o jogo contra o banco. Sobreviveram ao banco. Sabendo o que nos custa – em euros e em anos - pagar as casas, os carros o os pequenos vícios que nos animam os dias, deveríamos ser premiados quando temos o talento ou a sorte de assistir, no nosso curto tempo de vida, à morte de instituições que chegam a durar séculos.

Sei que há o argumento de que isso não é lá muito sério, que os investidores nos bancos que morrem têm direitos e que esses créditos são a única coisa que lhes dá alguma esperança de recuperar parte do que investiram. Mas a quem perde quase tudo pouca diferença fará perder tudo. E fazia tanta gente feliz...

No meio de todas as opiniões que leio ninguém sai em defesa do direito dos devedores à felicidade. Do direito a serem premiados por ter ganho ao banco no jogo que mais importa, o da vida.

Era só isto.

Também gostava de ouvir alguém estranhar o facto de termos ouvido o Marques Mendes dizer na TV o que ia acontecer ao BES, com uma precisão infalível, um dia antes do Governador do Banco de Portugal o anunciar. Estranho ninguém se perguntar quando o soube – essa informação valia milhões (muitos) – nem como o soube. Mas isso era galhofar e gosto de ser levado a sério.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Justiça

(latim justitia-aeconformidade com o direitoequidadebondade)
substantivo feminino
1. Prática e exercício do que é de direito.
2. Conformidade com o direito.
3. Direito.
4. Rectidão.
5. Magistrados e outros indivíduos do foro.
6. Poder judicial.
7. Lei penal.
8. Punição jurídica.
9. Uma das quatro virtudes cardeais.



Estou, como os Espírito Santo, caído na desgraça de ter a PT como credor. E, como eles, estou em incumprimento.

Para quem ache que o caso não é grave, a PT contratou uma multinacional de advogados – a Intrum Justitia - para me convencer a pagar o que lhe devo. E a Intrum Justitia (“dentro da justiça”, segundo o tradutor Google) não se desleixa nas tarefas que lhe acometem e já mostrou serviço sob a forma de duas simpáticas cartas.

A primeira, em Junho convidava-me a pagar a dívida de imediato num tom ameaçador “Deverá pagar Hoje” (textualmente, o sublinhado e a maiúscula) mas, ao mesmo tempo, pedagógico “uma vez que beneficiou de produto ou serviço prestado pelo Nosso Cliente”. Não fora o tom carregado do “pagar Hoje” e ainda lhes tinha escrito que não, não beneficiei do serviço prestado, pelo menos na integral extensão em que mo querem cobrar – do que avisei a PT atempadamente – e que, por isso, a facturação apresentada não corresponde à verdade. Mas se há coisa que me chateia é receber ordens estúpidas – seja na forma, seja no conteúdo.

Na segunda carta, recebida agora, a Intrum, lamenta-se pela minha falta de cordialidade: “não obtivemos da Vossa parte qualquer iniciativa concreta quanto à resolução amigável desta dívida.”, acrescentando que estão "certos que pretendo efectuar o pagamento”, pelo que propõem um plano de “três suaves prestações” mensais. O tom muda mas o erro subsiste: não propus nenhuma iniciativa por pouco concreta que fosse nem pretendo pagar o que reclamam.

Mais ainda, a Intrum erra nas contas e tenta enfiar um número que não é múltiplo de três nessas suaves prestações. Como é que o faz? Acrescenta um cêntimo à conta. Também me chateio com contas mal feitas, especialmente quando era tão fácil fazê-las bem já que o tal número era divisível por quatro –  e quatro prestações seriam mais “suaves” do que três.

A Intrum não erra só nas contas e no julgamento de intenções. Nessa mesma carta, avisa-me que há um Decreto-Lei (a firma de advogados chama-lhe  “Decreto de Lei”) que permite às operadoras inserir os meus dados “numa lista negra partilhada pelas operadoras” que lhes  permite “recusar a venda e prestação de serviço com base nessa informação”.

A ideia é tentadora – recebo mais chamadas e visitas de comerciais de telecomunicações (a PT veio cá hoje, ontem foi a Vodafone, no fim-de-semana ligou-me a NOS) do que da minha família e amigos – mas, infelizmente, errada.

É que a Intrum não está, afinal, por dentro da lei: andei a pesquisar e o montante que dizem que devo – sessenta e nove euros e oito cêntimos – é legalmente insuficiente (é preciso dever 97 euros) para me levar a esse paraíso onde os vendedores de telecomunicações não chegam.

E é aqui que lamento ainda não chegar aos calcanhares dos Espírito Santo. Esses já devem ter garantido o sossego durante várias gerações, a não ser que optem pelas “três suaves prestações”.

Mas não desanimo. A importância em dívida está a crescer à razão de treze cêntimos por mês, o que pelas minhas contas me permitirá o ingresso na invejável lista negra dentro de dezassete anos, dez meses e vinte e três dias.


Até lá, conto entreter os meus dias com as cartas da Intrum.  E com as histórias dos Espírito Santo.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Glorioso

adjectivo
1. Que dá glória; cheio de glória.
2. Bem-aventurado; ilustre, honrado.
3. [Irónico]  Vanglorioso, vaidoso.


Não me sai da cabeça a campanha prodigiosa que o Benfica fez esta época. Ganhar tudo o que havia nas competições portuguesas e ficar a dois penalties de também arrecadar a Liga Europa é coisa a que não se assiste com frequência e deve ser comemorado até que comece a próxima época. Pelo menos.

Muito provavelmente esta celebração continuada dos êxitos do glorioso pode ser apontada por adeptos de outros clubes como vaidade. Paciência. É mesmo vaidade. Se há momento em que devemos estar vaidosos do nosso clube, este é um deles.

Mas é preciso esclarecer que esta vaidade não assume o tom irónico que o dicionário lhe quer dar. É uma vaidade que não quer menosprezar os adeptos de outros clubes. É demasiado fácil ser do Benfica para fazer destes momentos um enxovalho para quem preferiu a difícil via de ser do Rio Ave, do Olhanense, do Sporting ou do Porto.

Porque o benfiquista não sabe o que é esperar trinta anos pela final da taça e perdê-la outra vez, não sabe o que é lutar para não descer de divisão, nunca teve jejuns de dezoito anos nem tem de se envergonhar com as conversas telefónicas dos seus dirigentes. Temos a vida muito facilitada.  Tão facilitada que os poucos momentos de desalento que às vezes nos calham são afastados por coisas tão pequenas como juntar o nosso desafino ao hino do Piçarra, a águia a sobrevoar o relvado ou um golo na segunda parte – quase sempre na baliza sul – a resolver um jogo mais complicado.

Vamos ter de mudar o cântico. Não foi só o campeão que voltou este ano. Voltou o campeão, o vencedor da taça da liga e o vencedor da taça de Portugal.  Moram todos no mesmo sítio. São todos o Benfica. Se nos lembrarmos das dezenas de clubes que tiveram de perder estas três provas para que nós as ganhássemos, temos aí mais uma boa razão para festejar: mostrar aos outros, os que perderam, o reconhecimento pelo valor que acrescentaram - pela bravura demonstrada – às nossas vitórias.


É isso que tenciono fazer.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Sonhar

verbo intransitivo
1. Ter um sonho ou sonhos.
2. Fantasiardevanear.
3. Ter ideia fixa.
4. Cuidar em.
5. Pensar com insistência em.
verbo transitivo
6. Ver em sonhos.



O homem que não conseguia sonhar estava sentado à beira do Tejo.

Se conseguisse sonhar tinha percebido o que a gaivota suspensa sobre o rio lhe tentava dizer. Que o desafiava a voar com ela em direcção ao sol que se punha, atrás do barco que partia.

Ouvi-la-ia contar-lhe as aventuras que se escondem para lá do horizonte. Histórias de flibusteiros e canhões, tesouros e sangue. Histórias de paixões quentes como o equador e amores eternos como os gelos polares.

Soubesse o homem sonhar, perceberia que a prata na superfície da água é a prata verdadeira. Sonharia pegar em toda aquela prata e comprar tudo o que não se compra: o ocaso de Junho sobre a barra de Lisboa ou um banco no Jardim da Estrela para se sentar naquelas tardes de Janeiro em que o Sol não disfarça o frio mas a companhia nos mantém quentes. Coisas assim.

Saberia, como só quem sonha sabe, que se pode adivinhar um futuro improvável. Saberia ainda que quando, inevitavelmente, esse futuro não chegasse, isso não seria doloroso, não seria uma desilusão. Saberia que sonhar é como saber que se pode voar como a gaivota e ao mesmo tempo saber que é impossível voar quando não se é uma gaivota.

Perceberia, enfim, que o sonho afinal não comanda a vida. Porque o sonho é a vida. É a parte da vida que nos mantém conscientes da vida real, aquela que não é sonho. Que nos dá a distância para perceber que a realidade por vezes supera o absurdo e, exactamente por isso, nos deixa a doce dúvida sobre a possibilidade de concretizar o que sonhamos. O que às vezes acontece.

Se o homem soubesse sonhar, tinha ali ficado a perder-se em sonhos de prata, de ouro e de aventuras, embalados pelas ondas do rio e pela sedução laranja que o horizonte de Lisboa às vezes forma a poente.

Mas não sabia sonhar.

Levantou-se, virou as costas as costas ao rio e voltou para casa.